Por Ladislau  Dowbor, prof. da PUc-SP- carta  
Eis o artigo.
Como  sociedade, desejamos não somente sobreviver, mas viver com qualidade de  vida, e porque não, com felicidade. E isto implica elencarmos de forma  ordenada os resultados mínimos a serem atingidos, com os processos  decisórios correspondentes. Os Mandamentos abaixo elencados têm um  denominador comum: todos já foram experimentados e estão sendo aplicados  em diversas regiões do mundo, setores ou instâncias de atividade. São  iniciativas que deram certo, e cuja generalização, com as devidas  adaptações e flexibilidade em função da diversidade planetária, é hoje  viável. Não temos a ilusão relativamente à distância entre a realidade  política de hoje e as medidas sistematizadas abaixo. Mas pareceu-nos  essencial, de toda forma, elencar de forma organizada as medidas  necessárias, pois ter um norte mais claro ajuda na construção de uma  outra governança planetária. Não estão ordenadas por ordem de  importância, pois a maioria tem implicações simultâneas e dimensões  interativas. Mas todos os mandamentos deverão ser obedecidos, pois a ira  dos elementos nos atingirá a todos, sem precisar esperar a outra vida.
Considerando  que a obediência à versão original dos Dez Mandamentos foi apenas  aleatória, desta vez o Autor teve a prudência de acrescentar a cada  Mandamento uma nota de explicação, destinada em particular aos  impenitentes. 
I – Não comprarás os  Representantes do Povo
Resgatar a dimensão pública do Estado:  Como podemos ter mecanismos  reguladores que funcionem se é o dinheiro das corporações a regular que  elege os  reguladores? Se as agências que avaliam risco são pagas por quem cria o  risco?  Se é aceitável que os responsáveis de um banco central venham das  empresas que  precisam ser reguladas, e voltem para nelas encontrar emprego?
II – Não Farás Contas  erradas
As contas têm de refletir os objetivos que visamos. O  PIB indica a  intensidade do uso do aparelho produtivo, mas não nos indica a utilidade  do que  se produz, para quem, e com que custos para o estoque de bens naturais  de que o  planeta dispõe. Conta como aumento do PIB um desastre ambiental, o  aumento de  doenças, o cerceamento de acesso a bens livres. O IDH  já foi um  imenso avanço, mas temos de evoluir para uma contabilidade integrada dos   resultados efetivos dos nossos esforços, e particularmente da alocação  de  recursos financeiros, em função de um desenvolvimento que não seja  apenas  economicamente viável, mas também socialmente justo e ambientalmente  sustentável. As metodologias existem, aplicadas parcialmente em diversos  países,  setores ou pesquisas.
III – Não Reduzirás o Próximo à  Miséria
Algumas coisas não podem faltar a ninguém. A pobreza  crítica é o drama  maior,  tanto pelo sofrimento que causa em si, como pela articulação com os  dramas  ambientais, o não acesso ao conhecimento, a deformação do perfil de  produção que  se desinteressa das necessidades dos que não têm capacidade aquisitiva. A  ONU  calcula que custaria 300 bilhões de dólares (no valor do ano 2000) tirar  da  miséria um bilhão de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia.  São custos  ridículos quando se considera os trilhões transferidos para grupos  econômicos  financeiros no quadro da última crise financeira. O benefício ético é  imenso,  pois é inaceitável morrerem de causas ridículas 10 milhões de crianças  por ano.
IV – Não Privarás  Ninguém do Direito de Ganhar o seu Pão
Universalizar a  garantia do emprego é viável. Toda pessoa que queira  ganhar o  pão da sua família deve poder ter acesso ao trabalho. Num planeta onde  há um  mundo de coisas a fazer, inclusive para resgatar o meio ambiente, é  absurdo o  número de pessoas sem acesso a formas organizadas de produzir e gerar  renda.  Temos os recursos e os conhecimentos técnicos e organizacionais para  assegurar,  em cada vila ou cidade, acesso a um trabalho decente e socialmente útil.  As  experiências de Maharashtra na Índia demonstraram a sua   viabilidade, como o mostram as numerosas experiências brasileiras, sem  falar no  New Deal da crise dos anos 1930. São opções onde todos  ganham:  o município melhora o saneamento básico, a moradia, a manutenção urbana,  a  policultura alimentar. As famílias passam a poder viver decentemente, e a   sociedade passa a ser melhor estruturada e menos tensionada. Os gastos  com  seguro-desemprego se reduzem. No caso indiano, cada vila ou cidade é  obrigada a  ter um cadastro de iniciativas intensivas em mão de obra.
V – Não Trabalharás  Mais de Quarenta Horas
   
Podemos trabalhar menos, e  trabalharemos todos, com tempo para fazermos  mais  coisas interessantes na vida. A sub-utilização da força de trabalho é um   problema planetário, ainda que desigual na sua gravidade. No Brasil,  conforme  vimos, com 100 milhões de pessoas na PEA, temos 31 milhões formalmente  empregadas no setor privado, e 9 milhões de empregados públicos. A conta  não  fecha. O setor informal situa-se na ordem de 50% da PEA. Uma imensa  parte da  nação “se vira” para sobreviver. No lado dos empregos de ponta, as  pessoas não  vivem por excesso de carga de trabalho. Não se trata aqui de uma  exigência de  luxo: são incontáveis os suicídios nas empresas onde a corrida pela  eficiência  se tornou simplesmente desumana. O stress profissional está se tornando  uma  doença planetária, e a questão da qualidade de vida no trabalho passa a  ocupar  um espaço central. A redistribuição social da carga de trabalho torna-se  hoje  uma necessidade. As resistências são compreensíveis, mas a realidade é  que com  os avanços da tecnologia os processos produtivos tornam-se cada vez  menos  intensivos em mão de obra, e reduzir a jornada é uma questão de tempo.  Não  podemos continuar a basear o nosso desenvolvimento em ilhas tecnológicas   ultramodernas enquanto se gera uma massa de excluídos, inclusive porque  se trata  de equilibrar a remuneração e, consequentemente, a demanda. A redução da  jornada  não reduzirá o bem estar ou a riqueza da população, e sim a deslocará  para novos  setores mais centrados no uso do tempo livre, com mais atividades de  cultura e  lazer. Não precisamos necessariamente de mais carros e de mais bonecas  Barbie,  precisamos sim de mais qualidade de vida.
VI – Não Viverás  para o Dinheiro
A mudança de comportamento, de estilo de vida, não constitui um  sacrifício, e  sim um resgate do bom senso. Neste planeta de 7 bilhões de habitantes,  com um  aumento anual da ordem de 75 milhões, toda política envolve também uma  mudança  de comportamento individual e da cultura do consumo. O respeito às  normas  ambientais, a moderação do consumo, o cuidado no endividamento, o uso  inteligente dos meios de transporte, a generalização da reciclagem, a  redução do  desperdício – há um conjunto de formas de organização do nosso cotidiano  que  passa por uma mudança de valores e de atitudes frente aos desafios  econômicos,  sociais e ambientais.
VII  – Não Ganharás Dinheiro com o Dinheiro dos Outros
   
Racionalizar os  sistemas de intermediação financeira é viável. A  alocação  final dos recursos financeiros deixou de ser organizada em função dos  usos  finais de estímulo e orientação de atividades econômicas e sociais, para   obedecer às finalidades dos próprios intermediários financeiros. A  atividade de  crédito é sempre uma atividade pública, seja no quadro das instituições  públicas, seja no quadro dos bancos privados que trabalham com dinheiro  do  público, e que para tanto precisam de uma carta-patente que os autorize a  ganhar  dinheiro com dinheiro dos outros. A recente crise financeira de 2008  demonstrou  com clareza o caos que gera a ausência de mecanismos confiáveis de  regulação no  setor. Nas últimas duas décadas, temos saltado de bolha em bolha, de  crise em  crise, sem que a relação de forças permita a reformulação do sistema de  regulação em função da produtividade sistêmica dos recursos. Enquanto  não se  gera uma relação de forças mais favorável, precisamos batalhar os  sistemas  nacionais de regulação financeira. O dinheiro não é mais produtivo onde  rende  mais para o intermediário: devemos buscar a produtividade sistêmica de  um  recurso que é público.
 A Coréia do Sul abriu recentemente um financiamento de 36 bilhões de  dólares  para financiar transporte coletivo e alternativas energéticas, gerando  com isto  960 mil empregos. O impacto positivo é ambiental pela redução de  emissões, é  anti-cíclico pela dinamização da demanda, é social pela redução do  desemprego e  pela renda gerada, é tecnológico pelas inovações que gera nos processos  produtivos mais limpos. Tem inclusive um impacto raramente considerado,  que é a  redução do tempo vida que as pessoas desperdiçam no transporte. Trata-se  aqui,  evidentemente, de financiamento público, pois os bancos comerciais não  teriam  esta preocupação, nem esta visão sistêmica
VIII – Não Tributarás Boas Iniciativas
A  filosofia do imposto, de quem se cobra, e a quem se aloca, precisa  ser  revista. Uma política tributária equilibrada na cobrança, e reorientada  na  aplicação dos recursos, constitui um dos instrumentos fundamentais de  que  dispomos, sobretudo porque pode ser promovida por mecanismos  democráticos. O  eixo central não está na redução dos impostos, e sim na cobrança  socialmente  mais justa e na alocação mais produtiva em termos sociais e ambientais. A   taxação das transações especulativas (nacionais ou internacionais)  deverá gerar  fundos para financiar uma série de políticas essenciais para o  reequilíbrio  social e ambiental. O imposto sobre grandes fortunas é hoje essencial  para  reduzir o poder político das dinastias econômicas (10% das famílias do  planeta é  dono de 90% do patrimônio familiar acumulado no planeta). O imposto  sobre a  herança é fundamental para dar chances a partilhas mais equilibradas  para as  sucessivas gerações. O imposto sobre a renda deve adquirir mais peso  relativamente aos impostos indiretos, com alíquotas que permitam  efetivamente  redistribuir a renda. É importante lembrar que as grandes fortunas do  planeta em  geral estão vinculadas não a um acréscimo de capacidades produtivas do  planeta,  e sim à aquisição maior de empresas por um só grupo, gerando uma  pirâmide cada  vez mais instável e menos governável de propriedades cruzadas, impérios  onde a  grande luta é pelo controle do poder financeiro, político e midiático, e  a  apropriação de recursos naturais.
O sistema tributário tem de ser reformulado no sentido  anti-cíclico,  privilegiando atividades produtivas e penalizando as especulativas; no  sentido  do maior equilíbrio social ao ser fortemente progressivo; e no sentido  de  proteção ambiental ao taxar emissões tóxicas ou geradoras de mudança  climática,  bem como o uso de recursos naturais não renováveis (2).
O poder redistributivo do Estado é grande, tanto pelas políticas  que  executa  – por exemplo as políticas de saúde, lazer, saneamento e outras  infra-estruturas  sociais que melhoram o nível de consumo coletivo – como pelas que pode  fomentar,  como opções energéticas, inclusão digital e assim por diante.  Fundamental também  é a política redistributiva que envolve política salarial, de  previdência, de  crédito, de preços, de emprego.
A forte presença das corporações junto ao poder político constitui  um  dos  entraves principais ao equilíbrio na alocação de recursos. O essencial é   assegurar que todas as propostas de alocação de recursos sejam  analisadas pelo  triplo enfoque econômico, social e ambiental. No caso brasileiro,  constatou-se  com as recentes políticas sociais (“Bolsa-Família”, políticas de  previdência  etc.) que volumes relativamente limitados de recursos, quando chegam à  “base da  pirâmide”, são incomparavelmente mais produtivos, tanto em termos de  redução de  situações críticas e consequente aumento de qualidade de vida, como pela   dinamização de atividades econômicas induzidas pela demanda local. A  democratização aqui é fundamental. A apropriação dos mecanismos  decisórios sobre  a alocação de recursos públicos está no centro dos processos de  corrupção,  envolvendo as grandes bancadas corporativas, por sua vez ancoradas no  financiamento privado das campanhas.
IX – Não Privarás o Próximo do Direito  ao Conhecimento
Travar o acesso ao  conhecimento e às tecnologias sustentáveis não faz o  mínimo sentido. A participação efetiva das populações nos processos de  desenvolvimento sustentável envolve um denso sistema de acesso público e   gratuito à informação necessária. A conectividade planetária que as  novas  tecnologias permitem constitui uma ampla via de acesso direto. O  custo-benefício  da inclusão digital generalizada é simplesmente imbatível, pois é um  programa  que desonera as instâncias administrativas superiores, na medida em que  as  comunidades com acesso à informação se tornam sujeitos do seu próprio  desenvolvimento. A rapidez da apropriação deste tipo de tecnologia até  nas  regiões mais pobres se constata na propagação do celular, das lan houses  mais  modestas. O impacto produtivo é imenso para os pequenos produtores que  passam a  ter acesso direto a diversos mercados tanto de insumos como de venda,  escapando  aos diversos sistemas de atravessadores comerciais e financeiros. A  inclusão  digital generalizada é um destravador potente do conjunto do processo de  mudança  que hoje se torna indispensável.
X – Não Controlarás a Palavra do  Próximo
Democratizar a comunicação tornou-se  essencial. A comunicação é uma  das áreas  que mais explodiu em termos de peso relativo nas transformações da  sociedade.  Estamos em permanência cercados de mensagens. As nossas crianças passam  horas  submetidas à publicidade ostensiva ou disfarçada. A indústria da  comunicação,  com sua fantástica concentração internacional e nacional - e a sua  crescente  interação entre os dois níveis - gerou uma máquina de fabricar estilos  de vida,  um consumismo obsessivo que reforça o elitismo, as desigualdades, o  desperdício  de recursos como símbolo de sucesso. O sistema circular permite que os  custos  sejam embutidos nos preços dos produtos que nos incitam a comprar, e  ficamos  envoltos em um cacarejo permanente de mensagens idiotas pagas do nosso  bolso.  Mais recentemente, a corporação utiliza este caminho para falar bem de  si, para  se apresentar como sustentável e, de forma mais ampla, como boa pessoa. O   espectro eletromagnético em que estas mensagens navegam é público, e o  acesso a  uma informação inteligente e gratuita para todo o planeta, é  simplesmente  viável. Expandindo gradualmente as inúmeras formas alternativas de mídia  que  surgem por toda parte, há como introduzir uma cultura nova, outras  visões de  mundo, cultura diversificada e não pasteurizada, pluralismo em vez de  fundamentalismos religiosos ou comerciais.
O fato que mais inspira esperança é a multiplicação impressionante  de   iniciativas nos planos da tecnologia, dos sistemas de gestão local, do  uso da  internet para democratizar o conhecimento, da descoberta de novas formas  de  produção menos agressivas, de formas mais equilibradas de acesso aos  recursos. O  Brasil neste plano tem mostrado que começar a construir uma vida mais  digna para  o “andar de baixo”, para os dois terços de excluídos, não gera tragédias  para os  ricos. Inclusive, numa sociedade mais equilibrada, todos passarão a  viver  melhor. Tolerar um mundo onde um bilhão de pessoas passam fome, onde 10  milhões  de crianças morrem anualmente de causas ridículas, e onde se dilapidam  os  recursos naturais das próximas gerações, em proveito de fortunas  irresponsáveis,  já não é possível.
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