26/12/2012

OS DONOS TEMPORAIS DO MUNDO. DENÚNCIA.

 Breve reflexão sobre a lógica das elites econômicas brasileiras
     Em meio às dificuldades da economia brasileira, dois estudos recentemente divulgados ilustram como o poder econômico está concentrado em pouquíssimas pessoas que, nos tempos que correm, controlam os destinos do mundo, solapando a ação do Estado e obstruindo qualquer possibilidade de controle social sobre os rumos da economia.

Informações que também ajudam a confirmar características das elites nos países subdesenvolvidos, com passado de colonização e presente de dependência, como o Brasil.
      A primeira pesquisa mostra que, no Brasil, corporações estrangeiras adquiriram 167 empresas de capital nacional no primeiro semestre de 2012, a maior liquidação de empresas privadas brasileiras num único semestre de toda a história do país, batendo o recorde do primeiro semestre de 2011 (94 empresas desnacionalizadas).

São dados da última Pesquisa de Fusões e Aquisições da consultoria KPMG. A maior parte (71 empresas nacionais) foi adquirida por transnacionais com sede nos EUA, seguido por corporações da França (13 empresas nacionais adquiridas), da Inglaterra (12 empresas) e da Alemanha (11 empresas), entre outras.

O capital estrangeiro adquiriu controle de empresas nos mais diversos setores da economia: de serviços para empresas (21 desnacionalizações) e tecnologia da informação (17), passando por produtos químicos e farmacêuticos (17), alimentos, bebidas e fumo (9), telecomunicações e mídia (8), mineração (7), entre outros.
 Desde 2004, passaram a ser controladas de fora do país nada menos que 1.167 empresas que antes eram nacionais, sendo 86,5% destas (1.009 empresas) desnacionalizadas após 2006, ano em que o Governo Federal passou a facilitar o ingresso no País do chamado “investimento direto estrangeiro”, eufemismo para a compra de empresas nacionais por transnacionais.
     A segunda e mais impressionante informação evidencia o que fazem os antigos empresários nacionais com os recursos que recebem por desnacionalizarem suas empresas, juntamente com os demais membros da seleta elite dos milionários do planeta. O Brasil é o quarto país com maior volume de recursos depositados no exterior. Em 2010, nada menos do que US$ 520 bilhões (cerca de R$ 1,05 trilhão) estavam depositados pelos mais ricos do país em paraísos fiscais. O valor é equivalente a quase 30% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro registrado em 2010, de R$ 3,7 trilhões, e muito superior à dívida externa do Brasil, que está em US$ 303 bilhões.
     São dados do relatório The Price of offshore revisited (O preço do dinheiro em paraísos fiscais revisitado, em tradução livre) da ONG inglesa Tax Justice Network (Rede de Justiça Tributária, em tradução livre), elaborado pelo economista James Henry.
Trata-se do mais completo mapeamento dos recursos financeiros investidos em paraísos fiscais, como a Suíça, as Ilhas Cayman e o Uruguai, e não declarados às autoridades nacionais, como a Receita Federal, no Brasil.
A fortuna dos ricos brasileiros no exterior só perde para a dos chineses (US$ 1,1 tri), dos russos (US$ 798 bi) e dos coreanos (US$ 779 bi). No total, o estudo estima em pelo menos US$ 21 trilhões o total de recursos expatriados no mundo, valor equivalente ao PIB somado dos EUA e do Japão, nas mãos de 10 milhões de investidores. Deste montante, cerca de US$ 9,8 trilhões pertencem a apenas 91 mil pessoas, ou 0,001% da população mundial.
     Até o fim de 2010, os 50 maiores bancos privados do mundo administravam US$ 12,1 trilhões em ativos investidos além das fronteiras dos países de origem dos recursos.
O volume era de US$ 5,4 trilhões em 2005, um crescimento anual da ordem de 16% nesse período.

Os bancos que detêm o maior volume de recursos desta natureza são os suíços UBS e Credit Suisse e o estadunidense Goldman Sachs. “Esses bancos agem, principalmente, abordando as elites de países exportadores de riquezas minerais (petróleo, minério de ferro, pedras preciosas) – inclusive os africanos – para que enviem seus recursos ao exterior”, afirma o diretor da Tax Justice Network John Christensen.

Na América Latina, além do Brasil, México (US$ 417 bilhões), Venezuela (US$ 406 bilhões) e Argentina (US$ 399 bilhões) estão entre os 20 países cujas elites mais enviaram dinheiro a paraísos fiscais ao logo das últimas três décadas.
O autor do estudo ressalta que a desigualdade no mundo é muito maior do que a estimada nos trabalhos já realizados sobre o tema, uma vez que estes não levam em conta os valores expatriados pelos super-ricos do mundo, considerando apenas a renda das pessoas, basicamente decorrente de salários. Assim, a desigualdade de riqueza aprofunda absurdamente a desigualdade de renda.
 Uma economia crescentemente desnacionalizada, com os centros de decisão das empresas deslocados para o exterior, num contexto de extrema concentração de riqueza nas mãos de um reduzido número de pessoas, com fortunas familiares que superam em muito o PIB da maioria dos países do planeta: eis a correlação de forças do mundo em que vivemos.
     Particularmente, a elite brasileira, completamente desenraizada em seu próprio país, é incapaz de se reconhecer na sofrida história latino-americana e por isso projeta suas raízes nos países do centro do sistema capitalista, de onde importa costumes, valores e modas estéticas e intelectuais.

O desenraizamento da elite brasileira determina seu padrão de consumo. E, com conseqüências ainda mais dramáticas, influencia o espelhamento da classe trabalhadora nos padrões globais de consumo e na forma de vida defendida pela elite brasileira.
O desejo de consumir como a elite consome, passa a condicionar o horizonte político de ação dos trabalhadores, estreitando suas lutas emancipatórias e reduzindo-as aos limites estreitos do corporativismo sindical, cuja direção torna-se presa fácil para a cooptação pelos interesses empresariais.

O estudo verificou que a maior parte dos países que possuem dívidas externas é, na verdade, credor, quando se computam os recursos depositados em paraísos fiscais. O problema é que esta riqueza, sob controle das elites locais, está expatriada, enquanto a dívida é paga por todos os cidadãos. Como escreveu Simone Weil, “o dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os motivos pelo desejo de ganhar (...). Nada mais claro e simples que uma cifra” (A condição operária e outros estudos sobre a opressão, 1943).
     Diante de tamanho desafio, é alentador recorrer à força utópica de Carlos Drummond de Andrade: “Tantos pisam este chão que ele talvez / um dia se humanize (...) / Nossos donos temporais ainda não devassaram / o claro estoque de manhãs / que cada um traz no sangue, no vento” (“Contemplação no banco”, Claro Enigma, 1951).
GT Conjuntura, 06 de agosto de 2012.

23/12/2012

A estrela de Belém


O Natal é uma festa paradigmática. Seus símbolos, aparentemente infantis, são psicologicamente profundos. Viver é uma experiência natalina. A diferença é que, em torno de 25 de dezembro, três fatores se somam: o caráter religioso da festa, que impregna a boca da alma de estranho sabor de nostalgia; a fissura papainoélica do consumismo e dos presentes compulsórios; e a proximidade da virada do ano

Conta a Bíblia que sobre a cidade de Belém da Judeia reluziu uma estrela ao nascer Jesus. Provenientes da Babilônia, os reis astrólogos, também conhecidos por magos, orientaram-se por ela até chegarem à manjedoura, junto à qual adoraram o Menino.

 O rei Herodes, que governava a Palestina, viu na estrela um mal presságio. Já que o seu poder não tinha forças para apagar a estrela no céu, ordenou que o Messias fosse eliminado da face da Terra.

. Enquanto a compulsiva comercialização da data condena-nos à ressaca espiritual, o caráter religioso da festa deixa-nos com saudades de Deus, e a chegada do Ano-Novo reforça nosso propósito de melhorar de vida.
Daí o sentimento conflitivo de quem gostaria de acordar na manhã de 25 e encontrar, nos sapatos, um símbolo de afeto, o afago à criança que dorme dentro de nós, mas sabe que, no império do mercado, a idade adulta é inimiga da infância.

“Ora, direis ouvir estrelas!”, canta o poeta. Sim, temos olhos e ouvidos para os signos que expressam o novo. Na vida, nossos passos são conduzidos por estrelas, sonhos e ambições que simbolizam a fonte da felicidade. Nunca estamos satisfeitos com o que somos ou temos. Feitos de matéria transcendente, trafegamos no labirinto da existência seduzidos pelo absurdo, mas famintos de Absoluto.

 Para os antigos, a imagem da utopia era um jardim repleto de fontes, flores e frutos. Para a Bíblia, o Jardim do Éden, que em hebraico significa “lugar de delícias”, lá onde se suprime o limite entre o natural e o sobrenatural, o humano e o divino, o efêmero e o eterno.
 Hoje, nosso mal-estar advém desse horizonte estreito em que miramos estrelas cadentes. Raras as ascendentes.
 Iniciamos o século e o milênio como aprendizes de deuses, capazes de engendrar vida em provetas e possuir olhos eletrônicos que penetram a intimidade da matéria e do Universo, sem, no entanto, erradicar a fome, a desigualdade e a injustiça. Somos órfãos da esperança.
Quase tudo está ao alcance do poder do dinheiro, exceto o que mais carecemos: um sentido para a vida.

Tateamos, sonâmbulos, nessa interminável noite de insônia. Calam-se as filosofias, confinadas aos limites da linguagem; desaparecem as utopias, travestidas no mesquinho desejo de poder e posse de refinados objetos; enquanto as religiões cedem às exigências do mercado e oferecem o lúdico a quem busca luz, sem abrir as portas que nos conduzam à inefável experiência de Deus.
“E agora, José?”
Agora, é mudar o Natal e nós próprios. Evitar o Papai Noel consumista em cores de Coca-Cola e procurar o brilho da estrela em nossas inquietações mais profundas. Descobrir a presença do Menino em nosso coração. E, como sugeriu Jesus a Nicodemos, ousar renascer em gestos de carinho e justiça, solidariedade e alegria.
 Em vez de dar presentes, fazer-se presente lá onde reina a ausência: de afeto, saúde, liberdade, direitos.

Dobrar os joelhos junto à manjedoura que abriga tantos excluídos, imagens vivas do Menino de Belém.

 Feliz Natal, Brasil! Queira Deus que o Herodes que nos habita ceda lugar aos magos que acreditam na estrela e oferecem ao milagre da vida o melhor de si.

 Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.http://www.freibetto.org/