29/05/2011

Educação Infantil. Questionamentos e reflexões.

Doutora em educação e professora do Curso de Especialização em educação infantil da PUC/RJ, Léa Tiriba propõe, em sua tese de doutorado, a reinvenção das relações entre seres humanos e natureza nos espaços de educação Infantil.
Segundo Léa, é preciso dar mais liberdade às crianças, oferecer o que elas gostam. E o que a gente percebe é que criança gosta de estar em contato com a natureza. Muitas vezes, elas passam o dia todo fechadas dentro da escola. É como se a realidade se reduzisse às áreas entre os muros. Esquecemos que as crianças nasceram para o mundo e não para a creche.
O grande desafio do professor de educação infantil, preocupado com os temas da atualidade, é educar na perspectiva de uma nova sociedade sustentável. E isso, segundo Tiriba, implica em “rever as concepções de mundo e de conhecimento que orientam as propostas curriculares em que a natureza não tem valor em si mesma. Ela serve apenas como matéria-prima para a economia industrial”.
E prossegue: “se a vida transcorre no cotidiano das instituições, é aí que ela se afirma como potência ou impotência, de corpo e de espírito.”
Assim, autoconstituição e aprendizagem não são processos separados, explica a educadora.
Léa inspira-se na filosofia de Espinosa para concluir que as instituições educacionais devem ser vistas como “espaços de vivência do que é bom, do que alegra, e, frente à vida, nos faz potentes”. A professora propõe: “vamos ultrapassar as paredes de concreto, alargar as janelas das salas, deixar as crianças de pés descalços, passar mais tempo ao ar livre”.
Mesmo nas grandes cidades, em que as pré-escolas muitas vezes têm espaço limitado, é possível fazer que a criança passe menos tempo “emparedada”. Ela lembra que há sempre um parquinho por perto, uma praça ou mesmo um terreno baldio que podem ser utilizados. “Como aprender a respeitar a natureza se as crianças não convivem com seus elementos?”, pergunta Léa. Criança feliz põe os pés na terra, toma banho de mangueira, observa e interage com a natureza: “Ela é capaz de passar horas observando um formigueiro e tudo o que o professor deve fazer é participar dessas descobertas”, exemplifica. Léa Tiriba observou que a maioria das unidades de educação infantil possui pátios com pisos cobertos. Em uma escola, reparou que, por baixo da cobertura de pedra, a terra foi isolada com um plástico preto. “Uma forma de evitar o crescimento de plantas e, assim, afastar os insetos”, explicaram.
E acrescenta: “A grama, onde existe, muitas vezes não está liberada para as crianças,
sob o pretexto de que nela não se pode pisar.” Dessa forma, as crianças são privadas de brincadeiras como cavar, amontoar, criar, construir e demolir; atividades tão desejadas, que só a terra e a areia propiciam.
Geralmente, a vegetação presente nas creches e nas escolas reforça a concepção de que a natureza está à disposição dos humanos. Ela tem função decorativa ou instrumental. Isto é, a relação das crianças com o mundo vegetal é mediada por objetivos pedagógicos que visam a construção de noções abstratas.
Não se mostra, na prática, os processos de nascimento e de desenvolvimento dos frutos da
terra. São raríssimas as instituições em que as atividades de plantio e manutenção de hortas e
jardins incluem efetivamente as crianças. As torneiras servem apenas para limpar os espaços
e lavar as mãos delas. No verão, há banhos de mangueira ou de piscina. Mas, apesar das
altas temperaturas, não acontecem diariamente. Colocar barquinho de papel na correnteza
em dias de chuva, brincar de comidinha, dar banho em boneca, nada disso é
corriqueiro. Pelo contrário, é exceção.
Confinamento e controle
Tiriba ressalta que desfrutar da vida ao ar livre é um direito da criança. Mas o contato com o mundo natural está geralmente relacionado à sujeira, à desorganização, à doença e ao perigo: “A natureza é vista como ameaça à organização do cotidiano e da vida, planificada e pautada nos ideais de previsibilidade. Portanto, a solução é privar os meninos e meninas de atividades que poderiam, na visão das famílias, afetar a saúde.”
Léa observa ainda que manter o cotidiano distanciado da natureza facilita o processo de controle.
Na concepção das educadoras, em entrevista a espaços abertos, as crianças “ficam mais livres” e, portanto, mais “difíceis de controlar”.
Tal necessidade, segundo a professora, leva a uma pedagogia que privilegia os espaços fechados. “A própria formação dos educadores é pensada tendo os espaços das salas como referência”, conclui.
Outro fator que impede o contato com a natureza é um fenômeno que Léa chama de “ideologia do espaço construído”. A crescente demanda por creches e escolas resulta na ocupação de todos os espaços do terreno com edificações. O ar livre é tomado por novas salas, as áreas verdes somem, as crianças ficam emparedadas. Isso ocorre não só pela falta de recursos econômicos, mas também “por uma política assistencialista equivocada, que visa estender a cobertura do atendimento sem assegurar qualidade de vida”.
Além do mais, a professora chama a atenção para o fato de que costuma se valorizar o aprendizado concreto em detrimento da oferta de vivências, de experiências emotivas e de sensações que só a natureza pode proporcionar.
Essa alternativa não ocorre porque, segundo Tiriba, “os sentimentos não servem para confirmar o que foi trabalhado de forma sistemática”.
As crianças, por sua vez, têm verdadeiro fascínio pelos espaços externos porque eles são o lugar da liberdade.
Ao ar livre, as vivências suscitam encontros e as disputas são amenizadas.
Supervalorização do intelecto
Segundo Léa Tiriba, paradigmas como esses vêm sendo repetidos nas práticas das salas de aula
há pelo menos trezentos anos: “Foi dessa forma que chegamos ao estado de estranhamento entre natureza e ser humano.
Não nos percebemos mais como parte de um todo planetário, cósmico. Confirmou-se uma visão antropocêntrica que atribui ao ser humano todos os poderes sobre as demais espécies. Acreditamos ser proprietários da natureza, os grandes administradores do planeta”, afirma.
A razão, segundo a professora, sobrepôs-se aos ritmos naturais, vistos como obstáculos
para um espírito pesquisador, desvendador de todos os mistérios da vida.
Um espírito capaz, até mesmo, “de determinar os rumos da história”. A supervalorização
do intelecto resultou no desprezo pelas vontades do corpo, provocando o divórcio entre corpo e mente. Para ela, as relações com a natureza, vitais e constitutivas do humano, são pouco valorizadas porque o homem moderno foi se desgarrando de suas origens animais, sensitivas, corpóreas.
A rotina pode ser inimiga da conscientização. Limitar as vontades e as necessidades é distanciar a criança do mundo natural. As repetições diárias das instituições educacionais acabam por separar também corpo e mente, razão e emoção.
Segundo Léa, o projeto pedagógico deve ser pensado de forma que possa harmonizar o
sentir e o pensar. Um sistema atento às vontades do corpo, que não aprisione os movimentos e que estimule a liberdade de expressão. “O professor deve sempre se perguntar se está aproveitando tempo e espaço de forma saudável e positiva. Criança precisa de um ambiente alegre e criativo. Quando determinamos hora exata para comer, ir ao banheiro, brincar
etc., criamos um imperativo pedagógico que aliena os ritmos internos delas e altera o equilíbrio de sua ecologia pessoal.”
Uma das inspirações para sua pesquisa é o conceito de ecosofia, formulado pelo filósofo
Félix Guattari. A ecosofia articula as ecologias pessoal, social e ambiental. Léa explica que
“a ecologia pessoal diz respeito à qualidade das relações de cada ser humano consigo mesmo; a ecologia social está relacionada à qualidade das relações dos seres humanos entre si; e a ecologia ambiental diz respeito às relações dos seres humanos com a natureza”.
Reunidos, esses registros ecológicos expressam as dimensões da existência. E, portanto,
definem equilíbrios ecosóficos que expressam a qualidade de vida na Terra. A partir desta referência, a professora chegou ao seguinte questionamento: qual a qualidade das relações de cada ser humano consigo mesmo, com os outros humanos, e com as outras espécies que habitam a Terra?
De acordo com Léa, a estratégia de emparedamento das crianças serve ao capitalismo
porque produz corpos dóceis e disciplinados. Assim, “alienado da realidade natural e da realidade corporal-espiritual, o modo de funcionamento escolar contribui para o aprofundamento de uma lógica que produz desequilíbrios no plano das três ecologias”.
Degradação ecológica Em sua tese de doutorado, Léa Tiriba foi buscar na História a
origem da degradação ambiental que ameaça a vida no nosso planeta. Para isso, foi preciso compreender como se concretizou a separação entre seres humanos e natureza, ao longo da história do ocidente. Segundo ela, “as origens históricas e filosóficas do nosso estilo de vida resultaram em um modelo de desenvolvimento que produz, ao mesmo tempo, desigualdade social, desequilíbrio ambiental e sofrimento pessoal”.
A partir da Revolução Industrial, passamos a pensar que o homem é superior à natureza e não parte integrante dela.
A professora entende que “as conexões que se estabeleceram entre a economia, a ciência e
a filosofia formaram uma nova rede de conceitos e de valores que vem dando sustentação
ideológica a uma forma de organização social voltada para a acumulação de bens”. A partir
de então, a natureza passou a ter apenas valor comercial. Tudo que vem da terra é visto como
matéria-prima a ser transformada em bem de consumo.
Desconstruir para sobreviver
Léa Tiriba chama a atenção para o fato de que os educadores se preocupam em definir as
políticas sobre edificações, organização das instituições, projetos pedagógicos e propostas de formação profissional. Mas os pátios abertos raramente são mencionados.
“A necessidade de contato com a natureza não está clara em documentos, diretrizes, padrões
de infra-estrutura ou propostas pedagógicas”, critica ela.
No entanto, a professora lembra que as instituições educacionais são espaços perfeitos para desconstruir e reinventar estilos de vida.
Particularmente, as instituições de educação infantil são campos férteis para as revoluções moleculares propostas por Félix Guattari. Isso porque as crianças pequenas ainda não sofreram inteiramente os efeitos da institucionalização escolar. Portanto, “são mais flexíveis e abertas às possibilidades de subversão e transgressão de práticas que sustentam a lógica capitalista”, afirma a educadora.
Para se alcançar um novo equilíbrio ecosófico, Léa sugere que, além de qualquer curso ou
seminário de formação, é necessário transformar nossos valores.
Ela prega mudanças nos padrões de consumo; a desconfiança do poder explicativo do racionalismo científico; a superação do antropocentrismo e da ideologia do trabalho como fonte de aprimoramento humano.•
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/revista44.pdf

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